Entrevista com Henrique Cazes
Como vocês se conheceram?
R: Conhecê-lo pessoalmente coincidiu com a época em que
eu fui convidado, em 1980, para tocar na “Camerata Carioca”
que fazia um trabalho junto com Radamés Gnatalli.
Ao tocar na Camerata e fazer amizade com Radamés, eu conheci
um dia pessoalmente o Chiquinho. Isso foi na mesa do Lucas - o bar que
Radamés gostava de tomar Chopp no final da tarde. Esse bar, na
esquina de Souza Lima com Avenida Atlântica existe até
hoje.
Na época, o que a gente sabia do Chiquinho, é que além
de ser um grande músico, ele era um especialista em estúdio.
Um cara que chegava, improvisava e fazia as coisas acontecerem - era
um rei do estúdio. Então, no papo que rolou foram contadas
muitas estórias engraçadas de gravações.
Quando vocês trabalharam juntos?
Eu fui ter um contato de trabalho com Chiquinho a partir de 1986, quando
ele foi gravar numa produção que eu estava fazendo para
o Japão e então eu pude constatar que aquela fama que
ele tinha de resolver as coisas na hora, no estúdio, de chegar
e fazer o negócio acontecer, de fazer uma frase de improviso
que ficava muito mais bonito do que se o arranjador tivesse pensado
uma semana antes, que isso tudo era verdade, não era folclore
não.
E a partir daí a gente trabalhou junto em várias produções,
inclusive na gravação que ele fez com Rafael Rabello da
“Suíte Retratos” do Radamés. Eu transcrevi
dois movimentos daqueles, o 1º e o 3º, de dois violões
para violão e acordeon.
Em 1988 a gente fez um trabalho maior que foi gravar um disco do Guilherme
de Brito (outra produção para o Japão). No mesmo
ano, a gente se apresentou, pela primeira vez, juntos, na sala Cecília
Meireles. Foi num espetáculo chamado “Sarau para Radamés”
que tinha participação da Orquestra de Cordas Brasileira,
solistas convidados, Chiquinho do Acordeon e o Rafael Rabello.
Chiquinho tocou então, pela primeira vez, o “Concerto para
Acordeon” com a orquestra, com arranjo feito por Josimar Carneiro.
A transcrição de uma orquestra, com violino, para uma
orquestra de cordas dedilhadas com bandolim, cavaquinho, etc, foi uma
experiência que agradou muito o Chiquinho. Foi isso que o levou
a querer gravar o “Concerto” em estúdio, com essa
formação da Orquestra de Cordas Brasileira.
Como era trabalhar com Chiquinho?
À medida em que comecei a produzir mais coisas, escrevendo pra
diversas gravações, eu procurava sempre chamá-lo
porque ele era aquele músico que chegava no estúdio e,
para qualquer idéia que você tivesse tido, na hora ele
fazia uma coisa de improviso, e melhorava tudo. Resolvia os arranjos
no sentido prático, que é importantíssimo para
quem trabalha na pressão do tempo, dos prazos e essa coisa toda
típica de gravação em estúdio.
Como ficou a gravação do Concerto para Acordeon?
O concerto, nessa época, já tinha uma gravação
feita ao vivo, que depois até saiu em selo da rádio Mec
(Ministério da Educação e Cultura). Era uma gravação
que ele não gostava porque tinha errado uns trechos na cadência,
que o deixava meio irritado.
Ele queria gravar aquilo tudo limpinho, que saísse tudo perfeito,
e eu falei pra ele: “Olha quando aparecer finalmente o patrocínio
(da Atlantic, empresa de Petróleo, que ainda estava no Brasil),
nós vamos fazer uma gravação conforme você
quer. Você não vai tocar junto com a orquestra. Você
vai fazer só a guia, a cadência eu vou gravar separado,
com você sozinho dentro do estúdio, e a gente vai emendar
de maneira que fique conforme você quer”.
Porque realmente essa música do Concerto tinha uma importância
especial para ele, não só porque foi feito pelo Radamés
e dedicado a ele, mas porque é um dos raríssimos concertos
para acordeon.
Além disso, o Radamés fez isso com Chiquinho num momento
em que ele estava mudando de vida. Tinha se separado, estava passando
por umas dificuldades - todas relativos à mudança de vida
- e aquilo ali na verdade foi uma espécie de desafio do Radamés,
dar uma jeito de ele fazer alguma coisa além do normal, diferente
do que ele já fazia gravando em estúdio.
Em 1990 quando a gente foi gravar o Concerto para Acordeon, fizemos
um trabalho duro. Demos uma preparada boa na música e fomos pra
um estúdio que não existe mais, chamava-se Máster,
ali em Laranjeiras.
Fizemos uma gravação muito caprichada, deixando ele muito
à vontade para que ele fizesse do jeito que ele achava. Depois
montamos todo o material de uma maneira que me orgulho muito de ter
produzido. A gravação do concerto me orgulha não
só pela felicidade que deu a ele, mas também pelo prêmio
Sharp de inovação que ele recebeu no teatro do Hotel Nacional,
em 1992. Quando o disco recebeu o prêmio Sharp de melhor disco
instrumental, esse disco misturava essa gravação da Orquestra
de Cordas Brasileiras com a gravação do “Retratos”
com Rafael Rabello.
Só que quando a gente montou o disco e apresentou pra agência
da Atlantic, não quiseram incluir no disco o “Retratos”.
Até hoje, ninguém entendeu isso.
A gente teve que correr para, em uma semana, conseguir gravar outra
música para substituir, porque a gravação de Retratos
foi negociada, foi legalizada graças à verba que veio
do patrocínio, mas acabou não sendo utilizada no disco.
Só foi utilizada quando o disco foi lançado comercialmente.
Esse período da gravação do Concerto para Acordeon,
foi o que eu tive maior contato com ele, ele ainda morava no Rio, a
gente passou um bom tempo juntos.
Foi o período de morte do meu pai também, e um período
que eu sofri um abalo muito grande com o “Plano Collor”.
Haviam muitas perspectivas positivas de projetos e, de repente, as coisas
se desmancharam. Todas. Foi um período difícil em que
essa aproximação ficou mais intensa.
Além de trabalho existia uma amizade, certo?
Quando eu estava prestes a ser pai de gêmeos, em dezembro de
1987. Fui morar na rua Duvivier, em Copacabana, e ele morava próximo,
na Praça do Lido. Então nos aproximamos pelo fato sermos
vizinhos. Tanto que no primeiro dia de feira, na primeira quinta-feira
em que eu estava morando lá, ele me ligou perguntando:
“ Já foi a feira hoje?”
Eu falei:
“não!”
Ele disse:
” Então vem comigo, senão você vai comprar
tudo errado por aqui. Porque eu já conheço todos os barraqueiros
e sei onde comprar melhor e mais barato, conheço esse negócio
todo por aqui !”
Eu fui fazer feira e ele me apresentou:
“Aipim é aqui, abóbora é ali, aquele cara
da abóbora é um baiano falador, mas temos que aguentar
porque a abóbora é boa.”
Ele me ensinou realmente o mapa da feira, que foi de grande utilidade,
inclusive porque depois que os meus filhos nasceram, fazia sopinha,
e já tinha meu esquema de feira graças a ele.
Que outros momentos marcaram esse convívio?
Em 1991 fomos convidados a participar de um disco com a Orquestra de
Cordas Brasileira, agora gravando no estúdio da Odeon, escrevi
uma suíte de três peças de Piazzola em que o Chiquinho
é o solista. Esse trabalho foi lançado no Brasil e no
mundo inteiro.
Quando ele foi morar lá no Espírito Santo, em Alegre,
sem me perguntar nada ele dizia pra todo mundo:
“Quem faz a minha agenda, quem sabe dos dias em que vou lá
no Rio é o Henrique“.
Aí eu marcava as gravações para ele, num período,
no outro, pra não embolar, ia tentando ajudar, mas era uma coisa
muito louca, até porque ele nunca me perguntou nada sobre isso,
se eu queria fazer isso ou não, ele me mandou fazer e pronto.
Nesse período de 1991 nós gravamos ainda um disco, uma
participação grande dele, num disco pro Japão.
Um disco sobre a música das bandinhas, música do mundo
inteiro. Esse trabalho, que saiu no Japão, foi um negócio
muito bem pago. Naquela época, o dólar valia muito e a
gente estava ganhando bem em dólar.
Os últimos trabalhos que eu fiz com o Chiquinho foram algumas
gravações em 1992. Naquele esquema em que ele vinha para
o Rio por dois ou três dias, eu falava com o Rildo Hora e a gente
tentava acertar tudo nesse prazo.
Um dia, quando ele já estava morando em Alegre, a gente se encontrou
na Som Livre pra uma gravação, acho que com o Martinho
da Vila, e ele estava muito gripado, gripado de um jeito que não
ficava bom. Estava há dois meses gripado. Então, um dia
em agosto de 1992, eu recebi um telefonema da Sandra (a segunda esposa
do Chiquinho) dizendo que ele tinha feito uns exames e que não
estava nada bem. Ela estava apavorada com aquela situação.
Depois já perto de sua morte, quando ele estava morando no Leme
para se tratar, de vez em quando eu estava com ele.
A última vez que estive com o Chiquinho foi na tarde do dia 20
de janeiro de 1993. Ele estava hospitalizado no Hospital São
Lucas e eu fui lá de tarde. Era um dia de feriado e eu fiquei
conversando, batendo papo com ele. Ele estava muito mal, e, numa certa
altura do papo eu falei para ele que achava que aquele Concerto de Acordeon,
que aquilo ali nunca mais ninguém ia tocar.
Ele estava tomando soro, estava muito magro, chegou a se levantar da
cama, e falou:
“Não, não. Tem um cara que vai tocar esse negócio
bem, é o Toninho Ferragutti, lá de São Paulo. Você
me promete que você vai entregar a partitura pra ele? Você
vai fazer isso?”
E eu fiz. Foi a última coisa que ele me pediu, depois disso eu
fiquei uns dias sem notícias.
Fazia 20 anos da morte do Pixinguinha, e era um sábado de sol,
tempo lindo, um verão, fevereiro de 1993. A gente estava fazendo
uma homenagem ao Pixinguinha na Praça Nossa Senhora da Paz, e,
antes de eu sair de casa, recebi um telefonema da nora dele...
Fui lá pro show, não falei nada com ninguém, inclusive
para o Biju (músico que tinha tocado no conjunto dele durante
20 anos, no tempo em que ele tinha um conjunto de baile). Então,
quando acabou o concerto, que foi muito bacana, eu avisei pro pessoal,
inclusive para o Biju, que ele havia falecido.
Existe alguma curiosidade, algo que gostaria de ter presenciado,
na vida de Chiquinho?
Essa coisa do baile, que foi uma especialidade que eu não conheci
do Chiquinho.
Quando a gente se conheceu ele já não tinha mais o conjunto
de baile.
Sei que ele tocou baile por muitos anos, em lugares fixos (uma vez por
mês). Isso eu não conheci. Eu nunca fui a um baile do Conjunto
do Chiquinho do Acordeon. Mas é uma coisa que eu gostaria muito
de ter visto, porque o que as pessoas falam é que era muito bom.
Principalmente o pessoal que freqüentou a fase do Bola Preta. Houve
época em que ele tocava no Bola Preta toda semana. Contam que
quando chegava num certo momento do baile, davam um sinal pra ele avisando
que o jantar dos músicos estava posto na mesa. Todo mundo ia
jantar e ele pegava o acordeon eletrônico, ligava uma bateria
eletrônica, botava lá um ritmo de bolero e tocava sozinho.
E era a hora em que a pista enchia mais.
Eu nunca vi o Chiquinho tocando acordeon eletrônico, foi uma coisa
que marcou época aqui no Rio. Ele usava um da marca Cordovox,
que tinha sons diferentes, uma espécie de sintetizador, como
os teclados de hoje em dia. O Chiquinho tem muitas gravações,
principalmente no comecinho dos anos 60, com muita utilização
desse instrumento, mas eu pessoalmente nunca vi ele tocar isso.
Lembra de algum fato específico da sua convivência
com o Chiquinho?
Em 1991 antes dele se mudar, no comecinho do ano, no dia que começou
a Guerra do Golfo, quando a televisão ficava transmitindo bombardeio,
ele apareceu lá em casa de noite, umas 8 horas, dizendo:
“Tô precisando da tua ajuda”.
“Para quê ?”, respondi.
“Porque porque eu tenho que escrever os arranjos do disco do Dominguinhos
e estava achando que era uma coisa simples, como ele sempre faz, aquele
forró, aquele negócio normal. Mas esse disco vai ser diferente,
vai ser um disco em que ele vai gravar só músicas do Caetano
Veloso, do Djavan, então eu preciso que você me ajude a
tirar uns negócios aqui que eu não estou conseguindo tirar”.
Aí trouxe um monte de papel de música. Ele tinha começado
a escrever as músicas e a gente ficou tirando alguns trechos.
Isso foi uma coisa muito engraçada, porque apesar de ter uma
leitura musical muito desenvolvida, uma capacidade de improvisação
muito desenvolvida. O Chiquinho tinha dificuldade em umas coisas absolutamente
bestas do tipo escrever música. Na verdade ele tinha uma certa
preguiça porque pelo que ele lia de música, ele pegaria
rápido, e, se ele treinasse uma semana.
Ele tinha essa coisa, de uma pessoa extremamente prática, um
cara que tinha uma ligação com a música extremamente
simples, de fazer a coisa funcionar. Ele não estava preocupado
se estava certo ou errado, a questão toda era ele chegar no estúdio
e gravar rápido, gravar de primeira, essa era uma preocupação
que ele sempre tinha. Eu costumo dizer que o Chiquinho tinha uma palavra
mágica. Para mim era a palavra “GRAVANDO !”. Quando
falavam “gravando !”, ele acertava tudo o que não
tinha acertado nas passadas. Normalmente é o contrário,
o cara chega cheio de moral, fazendo gracinha e quando falam “gravando
!” o cara trava, fica nervoso e toca pior. Com ele era ao contrário,
ele destravava na hora de gravar, ele acertava tudo, tinha umas idéias
de improviso que ele só mostrava na hora de gravar para não
ficar gastando, uma coisa muito impressionante.
Uma vez ele foi gravar um disco comigo, um para uma campanha política
e ele tinha um casamento pra ir. Bem, ele chegou no estúdio às
3 horas e falou:
“Às 3h30 eu tenho que ir embora”.
Aí eu botei lá uma cifra e uma introdução
no forrozinho, demos uma passada e gravamos a base. Quando nós
fomos ouvir ele falou:
“Espera aí, em vez de vocês ouvirem, grava logo outro
acordeon pra botar no outro lado, para abrir no estéreo”,
aí era uma outra levada.
“Já ficou pronto aí ? Não, espera aí
que tem um detalhe, falta um terceiro canal”, e ele foi fazendo.
Depois a gente foi equilibrando pra escutar, e, quando a gente foi procurar
ele, ele já tinha ido embora. Ele tinha esse sentimento de como
funciona a “malandragem” do estúdio. O que precisa
pôr, o que adianta fazer, o que não adianta, um esforço
a mais que vale a pena, uma coisa que não vale a pena, uma frase
difícil que não precisa. Uma coisa simples, só
uma coisa, do tamanho certinho.
O Chiquinho deixou uma impressão de trabalho em estúdio
tão forte, que desde a última vez em que ele trabalhou
comigo, no começo de 92, até 2001 mais ou menos, eu nunca
mais me animei em chamar um outro acordeonista pra gravar. Porque você
se acostumava com aquilo, era tão fácil, era um negócio
que ficava tão bom, rápido e certo, que impressionava.
Eu escrevia uma frase e a frase ficava bonita! Depois dele eu nunca
mais me animei.
Eu acho que o importante nessa altura é chamar a atenção
principalmente das pessoas mais novas para que esse estilo, para que
esse jeito de tocar, não se perca. Para que a consiga de alguma
maneira ter seguidores neste estilo, porque hoje o peso do acordeon
vai todo pro lado do forró. A oferta de trabalho quase sempre
é para forró. Eu tenho chamado atenção,
falo para os novos músicos:
“Lê isso aqui, escuta isso aqui”. Dou o disco do Retratos
para eles e aí os caras ficam doidos.
Nas mãos do Chiquinho o acordeon era um outro instrumento, os
que ouvem sabem que um universo se abre à sua frente. Mas a gente
está conseguindo aos pouquinhos, que as pessoas procurem, não
imitar, mas conseguir fazer que esse estilo tão marcante não
se perca.
Essa informação toda é importante ter, é
uma forma da gente garantir que o que o artista fez durante trinta anos,
quarenta anos no caso do Chiquinho, que tudo que ele fez não
se perca que tenha alguns seguidores, isso é um grande objetivo
meu, conseguir convencer jovens a ouvir o Chiquinho e tentar, de um
jeito que eu não sei porque eu não toco acordeon, tentar
descobrir como é que se toca. Porque aquilo que ele tocava era
tão especial. Quando ele tocou dois compassos, o Radamés
contratou ele para a Rádio Nacional, e logo o Radamés,
que não queria colocar acordeon na orquestra da Rádio
Nacional de jeito nenhum.
Então ele tinha um jeito de tocar o instrumento que era diferente
dos outros. Os jovens acordeonistas tem um trabalho pela frente, no
sentido de conseguir pegar a essência dessa forma de tocar e aplicar.
Sobretudo porque é uma forma de tocar acordeon onde você
pode colocar em qualquer gênero de música. Um exemplo ?
Até no primeiro disco da Marisa Monte o Chiquinho participa,
não é uma coisa restrita só pra choro ou forró,
cai bem em qualquer canto. Também no livro sobre a bossa nova,
do Ruy Castro, o Chiquinho é posto como uma exceção,
porque na época da bossa nova havia aquela onda de tocar acordeon,
que era uma cafonice danada, a partir do Mário Mascarenhas. O
Chiquinho era reconhecido como um cara que tocava acordeon de forma
diferente, que inclusive tocou em gravação de Bossa Nova,
e que não era considerado cafona.
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